Textos

“Tudo é um rito”

11/02/2022 | Publicado em Reflexões

Qual trabalho?

Eram 10h45 de uma manhã de terça-feira quando finalmente me sentei na cadeira do trabalho e entrei no modo antropóloga. Senti alívio por chegar ali e grande vontade de silenciar, quando notei o motivo de meu corpo-mente já pedirem aconchego: eu já estava trabalhando há quase 5 horas desde que acordei – entre cuidados pessoais, cuidados com a família, tarefas domésticas e deslocamentos. Cada dia é um dia e, naquela terça, parecia que toda minha energia já se esgotava no meio da manhã.

Para continuar, talvez eu precisasse de um intervalo, de uma inspiração, uma meditação, uma boa comida, observar o que seria possível para o dia, ou mesmo aceitar o fato de, por vezes, não ter muita manobra. Entre parar tudo, diminuir o ritmo ou acelerar mais ainda, temos um retrato, ao meu ver, de uma questão humana típica da nossa realidade:

De quem é o “meu” tempo?

[Se puder, se permita, agora, fazer essa pergunta em voz alta ou em silêncio.]

A sensação de não ter margem de tempo para se restabelecer, acessar a intuição e expressar o que for necessário é fruto de incontáveis questões sociais e existenciais que eu não poderia listar aqui. Porém, para esse texto acho fundamental colocar que enquanto nos organizamos para entender e transformar estruturas sociais que não nos fazem bem – que nos tiram de tempo -, devemos junto a isso investigar:

Se eu me encontrasse com meu tempo, como se fosse um eixo honesto e relativamente flexível, conectado com o que tenho a oferecer ao mundo, como eu me sentiria no espaço da vida? Eu teria mais amplitude para ser e também para respeitar outros tempos?

Essa reflexão, que me acompanha há alguns anos, veio como um raio naquele dia, me trazendo a sensação de que atualizações precisavam ser feitas. Eu sentia “Preciso revisitar minhas horas…” Mas… já olhei tanto para elas. Ah! Quanto mais conseguimos abrir brechas para ficar face a face com (nossos) limites e possibilidades reais e, a partir daí, realinhar as coordenadas [em resumo um conjunto de “nãos” e “sins” mais compatíveis com “o que posso de fato fazer hoje?”], vamos descortinando lugares de alívio e respiro por não querer ser ou fazer mais do que somos. Esses lugares vão naturalmente pedindo passagem, como se esse pedido de abertura cotidiana fosse o fluxo natural da vida: a elaboração contínua e criativa (não tão óbvia e nem sempre indolor) de liberdade para estar vi-va. E sim, há de se deixar morrer um tanto de ilusão a cada dia.

Voltando, agora, às horas de trabalho, fazendo as contas entre atividades remuneradas e não remuneradas, muitas pessoas certamente chegam a 16 ou até 18 horas de trabalho por dia, o dobro do que seria uma jornada formal, restando 6 ou 8 horas para descanso ou sono. Junto à questão complexa da sobrecarga e até mesmo de se permitir ou não descansar, nesse momento, milhões de pessoas adultas sem um trabalho remunerado estão trabalhando e empregando sua energia de outras formas ao longo de seus dias – possivelmente sobrecarregadas, também. Nesse ponto, é importante olharmos e nos responder com franqueza: como nos sentimos nos fazeres e etapas do dia? Quantas vezes nos perdemos e não sabemos como voltar?

Todos os processos que envolvem o desenvolvimento de nossa existência são trabalhos valiosos, tantas e tantas vezes subestimados e diminuídos por nós. Só por estarmos vivendo, nós trabalhamos, trabalhamos muito, e o sentido desse viver segue conforme nos engajamos com cada ser vivo e cada coisa que tocamos neste instante.

 

Qual instante?

Esse exercício vital de conexão com o tempo-espaço de si não é só racional ou emocional ou espiritual, é o movimento do ser inteiro. Captar os sinais do corpo nas decisões, as cargas emocionais que surgem no “fazer” ou “pensar” e as sensações mais sutis ao olhar uma pessoa ou uma paisagem. Essa percepção é o que podemos chamar, mesmo com o desgaste desse termo, de: “estar no momento”. Dito dessa forma, peço para não nos anteciparmos com respostas automáticas sobre se sabemos fazer isso ou não.

O momento de vida é tão infinito para cada pessoa que existe um mar de possibilidades para se navegar nele (no ousado “melhor lugar do mundo” – aqui e agora – , se tivermos em condições de sentir!). Para mim, vem sendo interessante começar por entender profundamente como se compõe o meu dia e o que isso significa para mim e para outras pessoas. Pois, vemos com o tempo que a observação do nosso tempo-espaço jamais se separa da sensibilidade de ver o tempo-espaço do outro. Sim, são muitos “aqui e agora” interagindo juntos.

A atenção ao instante presente, nesse fluxo, tem a ver com a compreensão gradativa do que significa, para cada pessoa, estar viva junto a outros seres e expressar-se nesse entendimento, em trabalho e repouso, inspiração e expiração. Dito de outra forma, a atenção ao instante é o que chamamos de meditação-ação [aqui me refiro especificamente ao contexto das ciências contemplativas com origem nas filosofias budista e hindu, mas se aplica também a outras filosofias].

Para além do bom clichê “saber viver o momento”, que pode nos confundir com um lugar genérico, é importante identificar o que ocorre dentro e fora de nós enquanto trabalhamos-vivemos-descansamos, desenvolvendo respeito e cuidado pela alegria e pela dor de quem quer que seja.

Viver como quem respeita o que circula dentro e fora, os componentes desse pensar/sentir. E, do que penso/sinto, como me expresso? Como me envolvo com a realidade, em consequência disso? Essa amplitude faz morada para sentirmos o instante, que pode ser experienciado de infinitas formas.

Tudo é um rito ou sobre nos apropriar do que fazemos

Na noite anterior ao meu dia que começou às 6h, eu lia Thich Nhat Hahn (1926-2022), em seu livro “O milagre da atenção plena”. Não vou trazer tantos adjetivos aqui sobre esse monge vietnamita tão pequeno e tão grande (conheçam mais sobre ele!), mas falar como o sinto em meu coração: alguém que dedicou toda a sua energia de vida a estar consciente da riqueza de cada momento. E é esse recordar da vida como um contínuo cultivo de consciência por estarmos “aqui” que me faz olhar com mais amorosidade e compaixão para os dias em que parecem mais estagnados. E para os dias de florescimento também.

Ele diz em seu livro publicado pela primeira vez em 1975: “Cada ato deve ser conduzido em estado de atenção plena. Cada ato é um rito, uma cerimônia. Levar a xícara de chá até a boca é um rito. A palava “rito” parece demasiadamente solene? Eu uso esta palavra a fim de sacudir você para que compreenda que tomar consciência é uma questão de vida ou morte.” (O Milagre da Atenção Plena)

Na antropologia, consideramos que os ritos existem para nos ajudar a marcar aspectos e valores importantes para uma pessoa ou grupo.

Ao estimular esse exercício de olhar para tudo como um rito, sinto que Thich Nhat Hahn nos convida a trazer para perto a consciência do que nos pertence e precisamos nos apropriar: nossos atos. Dos mais simples ao mais complexos.

Para falar de atenção plena e ainda lembrar que “tudo é um rito”, é fundamental darmos boas-vindas a todo sentido simbólico do que significa “estar no momento presente”, pois apenas o apelo racional a isso, como se fosse algo instantâneo e sem nenhum tipo de elaboração, poderá nos frustrar. No cultivo da atenção, se buscamos observar a realidade com um olhar tranquilo, por exemplo, a forma como isso vai acontecer depende de um sujeito da ação para perceber, ativar, notar a tranquilidade em silêncio ou agitação. Mas, a fonte de um olhar tranquilo pode estar, para alguém, escancarada ou presa, estanque, nas entranhas. Pode estar inextricavelmente perto, que nem notamos, ou num lugar distante e gélido.

Por isso, não devemos subestimar a simplicidade necessária para habitar esses lugares de paz que podem ser naturais, mas também parecer estranhos na alma. No entanto, esse simples e elaborado trabalho, o trabalho da alma em sentir-se mais tranquila e à vontade no mundo, é aquele que liberta em vez de escravizar.  Thich Nhat Hahn, dentre tantos presentes que nos traz, nos recorda – com sua existência e também seu serviço para o mundo – da poesia que permeia nosso fazer, nossos movimentos; o toque das mãos nos objetos, os detalhes que sussurram, as texturas de nossas vozes.

Nessa percepção mais aguçada de atos que banalizamos e pedem verdadeira celebração, aprendemos pouco a pouco a nos posicionarmos na caminhada individual e coletiva, a colocar os pés sobre o chão se fazendo, a cada passo, boa companhia para si e para os outros. Nesse exercício de invocar mais apreciação e presença para a vida, de reivindicar nosso tempo-espaço possível, estamos nos reconciliando com nossos próprios atos, deixamos que eles sejam o que podem ser um por um e juntos. Como diz Thich Nath Hahn: a paz é cada passo. Cada. Passo.

E aqui, nesse último passo desse texto, vai uma provocação:

o que não puder ser reconhecido como digno de atenção, talvez não possa ser feito agora. Ao insistir, nos deslocamos, vamos para onde não sabemos estar, estamos no sentido oposto do que buscamos na meditação, ou seja, nos despedimos das necessidades de nossa alma.

Assumir o dia como uma prática meditativa constante não quer dizer que o fluxo das coisas será sempre maravilhoso, mas, que saberemos com mais clareza o que está acontecendo com a gente, também com quem está ao redor, inclusive reconhecendo emoções, necessidades, e podendo identificar quais movimentos estão de fato disponíveis para nós – neste instante.

 

Por Mônica Pedrosa Rangel – Cientista Social, Mestra em Antropologia, Instrutora de Meditação na abordagem Kindfulness, Especialista em Psicologia Junguiana.