Relato: Luma
No princípio era o desejo. De criar, de estar junto, de transformar.
“Quais as imagens de compaixão que ecoam nas vidas de vocês?", foi a pergunta-guia trazida por Mônica para abrir nossos caminhos - digo nossos e penso em cada artista que tece a trama de Expressões de Compaixão e em cada pessoa que esta exposição tocará ao estar no mundo. E continuou: “Luma, é sobre ‘compaixões’.”
Aqui, um devaneio: foi através da arte que os meus caminhos e os de Mônica se encruzaram; desses encontros que a alma sabe: daqui pra frente, nada será como antes. E nada tem sido - ainda bem. Um dia, numa de nossas primeiras conversas sobre o ofício de investigar as diversas formas nas quais a compaixão se expressa, Mônica me contou: “compaixão é sentir com - bem mais como um fluxo do que como uma ação isolada”. E algo aqui dentro encaixou, acendeu. É isso!
Nem preciso dizer que o convite já estava aceito, né? Criaria guiada pelas provocações de Mônica. Minha predileção pelo autorretrato como ferramenta auto investigativa não é segredo, então quanto à linguagem não havia dúvidas. Porém, como falar sobre ‘compaixões’ sozinha? Respondi, pois, o chamado com outro: vamos juntas?
No processo de criação, os desafios do ‘sentir com’ apresentaram-se para nós duas. A sensação de carregar pesos. Pesos tão nossos quanto do mundo; pois, das sabedorias que chegaram através dessa tessitura, há a lembrança de que não é meu ‘ou’ do outro; é meu ‘e’ do outro. É junto. E foi juntas que conseguimos encontrar meios de olhar diretamente para esses pesos; senti-los, antes de qualquer coisa. Honrá-los ao entender porque existiram, mas honrar também o chamado a uma transformação. Um processo alquímico; com água, fogo, ar e pés na terra: “sublima o corpo e coagula o espírito”.
Quero, agora, pular um pouco a linha do tempo do meio e falar do instante. Da vivência. Do estar ali, a frente de outro ser (depois de tanto tempo em isolamento) em corpo e em alma; nos (re)conhecendo.
Sou capaz de lembrar de cada memória que chegou nos momentos de investigação dos pesos; tanto ao ver e registrar Mônica quanto ao sentir as pedras com o meu próprio corpo. Era como se, naquele instante, eu pudesse me ver de fora - apesar de acessar um lugar tão dentro. Houve a descoberta de um tesouro: ao estar novamente diante de cada uma daquelas pedras, eu pude perdoar. A mim mesma, sabe? Os pesos tornaram-se diferentes, porque a culpa (que existia sorrateira, como se somada à gravidade) por carregá-los dissolveu. Ali, naquele instante.
Pude, então, trocar com os de Mônica: vem, eu posso carregar estes agora. Me ajuda com aqueles? Estamos aqui, inteiras; eu, tu e as nossas pedras. Porque, então, não chamá-las para brincar? Brincar, mesmo. Não precisa de tanta dureza.
Aproximá-las do fogo; sentir o seu calor em cada uma e em nossos corpos… Uma das magias mais bonitas da chama é a de nos acender por dentro.
Trazer, então, a sublimação do ar. Rir junto. Dançar. Sentir na pele o vento. Respirar. (Respira...)
Voltar às pedras. Mergulhá-las e deixar que a água, essa força que tanto acolhe quanto desagrega, cumpra seu papel. Nos pesos e em nossos corpos. E, ao estar diante desses pés, honrar os caminhos que nos trouxeram até aqui. Limpá-los, também, para seguir a caminhada.
E, então, o incenso. Pedaço de terra que se acende com fogo e deixa o ar com um cheiro molhado; o palo santo me faz sentir um tanto submersa. O início do fechamento daquilo que se ritualizou: está feito; agora a fumaça leva.
Estamos aqui. Inteiras. Eu, tu e nossos pesos. Nossa alma sabe: daqui pra frente, nada será como antes. E, em algum lugar do tempo-espaço, esse encontro segue acontecendo. Seguimos dançando.
Te convido, agora: vem também? Dança conosco?
Luma Torres é fotógrafa, professora, bordadeira, arte educadora, Recifense. Para ela "toda imagem pode ser também um espelho que reflete e refrata - acaso você se abra ao encontro..." Conheça mais sobre seu trabalho através do instagram.
Relato: Mônica
Eu ninava meu filho e sentia seu corpo sobre o meu, com o peso e a liberdade de amar. Enquanto cantava as músicas que saiam da alma, mergulhei nas perguntas que me fazia naqueles dias: qual a compaixão que sei? Como a vivencio e expresso em minha vida? Quais imagens acesso e dou corpo sobre esse movimento humano? Ali eu me vi crua e, como em um sonho, me imaginei numa cena junto a uma esfera que começava em minhas costas e depois passei a me mover com ela.
Eu já havia convidado Luma para o projeto Expressões de Compaixão, pois, quando tive contato com sua arte, pela primeira vez compreendi – na pele – a potência da criação artística como força de transformação humana. E eu me vi seguindo nesse barco, junto com ela. Em nossas conversas, dialogamos sobre o sentimento de que, na busca por praticar a nossa interconexão e compaixão com o outro, por vezes tudo pesa demais. Às vezes doem as costas, o pescoço, a alma, para fazermos o que julgamos necessário – é que o peito se fecha, mas também é capaz de se abrir como uma flor.
Da alegria de podermos dar forma a novas imagens juntas, fomos criando uma narrativa simbólica para vivenciarmos os “pesos do mundo” em nossos corpos, registrando as cenas e imagens que surgissem a partir daí. Luma sugeriu trabalharmos com pedras de diversos tamanhos, o que fez muito sentido para mim. A necessidade da água permeando o processo chegou desde o princípio e, com o tempo, completamos o ciclo com o fogo e o ar. Não iríamos modificar literalmente nenhum elemento, mas viver uma alquimia interna sobre doar-se e lançar o corpo no mundo.
No dia de nosso encontro nenhuma fotografia estava definida previamente, pois sabíamos que estávamos dispostas a uma vivência, totalmente aberta ao porvir. Preparamos o cenário com um azul de fundo, água nos recipientes de vidro e as pedras no chão. Isso era tudo.
Como se fosse começar a vida naquele instante – e foi esta a exata sensação –, iniciei a coleta das pedras para experiencia-las no corpo. A cada movimento, senti que estava refazendo caminhos ancestrais que já aconteceram além de mim, ao mesmo tempo em que as ações e seus limites chegavam de maneira não conhecida antes. A vida estava ali nos permitindo conhecer algo novo sobre “mover-se” como espécie.
Observei atentamente o que havia ali, o que talvez eu precisasse mobilizar... para quem sabe oferecer algo a mim, a alguém... Ouvi os sussurros de dentro, meus e do mundo, senti tantos filhos em meu ventre... Abri o peito e os nós da garganta. Ofereci.
Chegada a vez de Luma entrar em contato com as pedras, me vi em um lugar que é muito precioso para mim, o de observar. Dessa vez eu também iria fotografar... Como foi bonito lembrar que os gestos que fiz minutos antes com as pedras, ganhariam novos sentidos porque outro ser estaria se movendo em seu ritmo e necessidades... já estávamos nos encontrando, cada uma de seu lugar.
Fiquei absolutamente atenta ao mover-se e recolher-se de Luma, enquanto fazia as fotos que brotavam por elas mesmas. Confesso que em muitos momentos fiquei absorta, parei. Filmei poucos trechos enquanto sentia na pele a dádiva de testemunhar um ser livre diante de mim.
Depois de um tempo, fomos as duas estar com as pedras e a partir daí passamos a contar com as capturas fotográficas de Raul, que nos assistiu na vivência. Sim, agora eu e Luma iríamos seguir em movimentos conjuntos. Investigar os espaços, os pesos e as medidas dos nossos “moveres”. Em silêncio, dividimos alguns pesares, nos acompanhamos, seguimos falando com os gestos. Nas observações e ponderações de limites e expansões do corpo e da alma, ofertamos o que havia disponível ali em nós. Oferecemos.
Estávamos ali com nossas hesitações, dores, dúvidas, encantamentos, decisões, êxtases, cansaços. Estar com as pedras, carregá-las e mover-se com elas, como um experimento, nos trouxe talvez a grandeza que é sentir-se parte da vida e não apenas ser levada por ela. “Agora eu estou carregando isso.” “Me sinto íntegra ou em pedaços? “Como estão as pernas, o coração, o corpo todo?” “Posso parar?” “Posso ir em outra direção?” “O que posso manejar sozinha, em que ponto preciso de apoio e em que ponto não tenho mais domínio?” Por vezes, só nos resta recolhimento e um pouco de chão.
Como seria dizer para nós mesmas no cotidiano: “Apenas fique aqui com essas pedras. Elas provocam sensações variadas, boas, ruins, neutras. Sinta.”? Isso lembra que a culpa pelo sentir é muitas vezes aprisionante. Até a culpa por sentir culpa. Aqui, o peso é imenso. Pede pausa.
Dos desafios, dos excessos, das ausências, das matérias que não se sabe mais o que fazer com elas, ou que podem gerar danos, podemos contar com a água para fluidificar, dissolver, criar novas passagens e formas dentro de nós. Na vivência, como foi precioso saber que a água estava ali, disponível para a dissolução. E ela sempre está.
Começamos a diluir o que não poderíamos dar conta, o que já estava tão petrificado que poderia nos impedir de gerar coisas novas. Banhamos as pedras e os pés, em um momento de alívio e conexão profunda. Nada seria gerado ali além do cuidado e da cura do que fosse necessário... estivemos presentes uma para a outra.
Nossos pés juntos. Ah! Com eles no vaso decidimos nos importarmos, pausar para atender à renovação do corpo e do ser inteiro. Sim, podemos dedicar energia para se refazer e redescobrir na infinitude e profundidade da água.
Após o banho, então, um respiro.
Convidamos o fogo para nos mostrar com mais clareza os frutos de nossos movimentos. E também contemplar os mistérios do que não teríamos como saber. Com ele veio o incenso e o corpo solto no ar, dessa vez com mãos livres, sem pesos. Dançamos. Recorremos a possibilidade natural e humana de estar no espaço-tempo se estendendo pelo universo inteiro, sem fronteiras.
O fogo trouxe calor, trouxe a graça e a cumplicidade do encontro eu-outro-nós. Dos pesos, trouxemos o que nos nutre humanamente: saber, que em conjunto, há abertura no coração de tudo.
Mônica Pedrosa Rangel é antropóloga, especialista em psicologia junguiana, instrutora de meditação na abordagem Kindfulness, Recifense. Criou e trabalha aqui na Holos Espaços de Compaixão, por acreditar que estamos no mundo para criar coexistências possíveis.