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Por que compaixão?

05/11/2021 | Publicado em Reflexões

Sobre criar pontes, ou elaborar a vida em conjunto

Des(construir) o que nos faz humanos está na base da antropologia e da sociologia. Depois de milhares de anos de desenvolvimento filosófico, científico e espiritual da humanidade, pela primeira vez na história (há aproximadamente 200 anos) as ciências sociais, baseadas nos estudos comparados de tantos povos diferentes, vieram nos dizer que tudo o que somos é construído socialmente.

Não há nenhuma condição humana que não seja fruto das relações que nós mesmas(os) criamos nos lugares que habitamos; as variáveis classe, gênero, religião, parentesco, política, economia, raça e outras falam da forma como escolhemos e/ou fomos levadas(os) a viver. Isso quer dizer que, como espécie e parte da natureza, criamos nossa própria história e adaptamos nossos corpos a partir da consciência de seres individuais e coletivos ao mesmo tempo.

O que temos de universal ou específico passou a ser uma das grandes buscas das ciências sociais. Para encontrar algumas pistas, tornou-se necessário conhecer “o outro” profunda e amplamente. Aqui, bem aqui é que a compaixão entra, por várias portas, mesmo com a descrição de não falar seu nome, normalmente tão associado a contextos religiosos. Por isso a compaixão entra, inclusive, pela porta da desconstrução do que seria essa palavra.

Mesmo com uma grande ressalva a posturas de compaixão e caridade e mais alinhadas com o termo justiça social, as ciências sociais passaram a cultivar (com todos os percalços!) um olhar que busca atribuir um nível de dignidade a cada ser humano da terra, vivendo sob qualquer circunstância.

Metodologicamente falando, isso quer dizer que a cada estudo de determinado grupo social é necessário criar disposições para o contato, para a comunicação e a análise dos dados de maneira a não apenas contextualizar as situações de vida ali presentes, mas também (e sobretudo) compreender como a outra pessoa atribui sentido a sua existência. Ao realizar esse exercício, nos aproximamos tanto de quem se apresenta para nós quanto dos ecos que esse ser produz em nossas vidas.

Não nos cabe compreender por completo todas as pessoas que existem, os dilemas éticos são complexos e causam e demandam imensa energia, sem dúvidas.

Contudo, na tentativa de criar linguagens que possam tecer uma vida humana com mais sentido para todas as pessoas, o empenho de olhar, sentir e agir em conjunto, de se colocar no lugar de, de criar coexistências possíveis, de conferir dignidade a si e a outra pessoa, mesmo que ela não seja exatamente como gostaríamos que fosse, torna-se em minha visão uma postura fundante das ciências sociais, a que mais me chamou a atenção e, por esse motivo, decidi aprofundar em meu ofício como antropóloga.

Apesar de todo um campo distorcido em torno da palavra compaixão na academia e fora dela, optei por trazê-la para minhas pesquisas e práticas por sentir que muito precisaria ser reconstruído e reelaborado sobre a possibilidade de viver em conjunto.

Em um mundo em que ainda estamos aprendendo a lidar com a nossa interdependência, com desigualdades extremas em nosso passado e presente, criar coexistências possíveis é como criar pontes diante de sofrimentos (abismos) que parecem insuperáveis. Ainda, é aprender a estranha sensação de nutrir-se das alegrias de si tanto quanto de quem está ao lado ou muito longe.

Se diante da realidade do sofrimento e contentamento humano podemos dizer que importar-se com as outras pessoas é uma condição presente em todas as sociedades/culturas, é fato que precisamos aprender como isso se torna possível contextualmente e pode ser experienciado mais profundamente no calor de cada relação.

Tal tentativa de abertura já é o próprio fluxo da compaixão, que pode ser vista muito mais como uma forma de se engajar com a realidade do que uma meta última a se alcançar – sabe-se lá quando.

 

Novas maneiras de se engajar com a realidade

Agora, voltando para o complexo exercício de “compreender e considerar todo mundo em nossas ações”… como lidamos com isso? Alguém se entende por completo? Importante observar que compaixão não é compreender tudo ou necessariamente fazer coisas por alguém, mas conferir dignidade ao que se sente, ao que se vive, ao que se teme, duvida, desconhece. Dar espaço ao que existe e, se necessário, transformar em vez de aniquilar.

Tentando ponderar o que seria o bem para si e para as pessoas, transitamos pelo que pode ser o mundo do outro e conhecemos mais sobre o nosso também. Não temos respostas definitivas, mas podemos trilhar caminhos de abertura para escuta, para o que é familiar ou tão estranho. Nem sempre fazemos isso com facilidade.

No trabalho diário de reconhecer os desafios da nossa compreensão/ação, os canais que podemos percorrer para alargar o nosso coração são evidenciados aos poucos. Aqui nos deparamos com nossos limites em dados momentos, nos levando a silenciar ou buscar novas maneiras de olhar e se engajar com a realidade – esse estado de incerteza e elaboração é tão importante quanto qualquer outro.

Ao dialogar com o que surge no contato com as mais diferentes pessoas – perceber pensamentos, sentimentos, sensações – é que talvez seja possível encontrar o tom da compaixão que cabe a cada uma/um e em cada momento. Viver pensando no coletivo é um valor que só ganha vias práticas quando situamos na nossa história como é possível caminhar em conjunto – com pessoas do trabalho, da família, da vida, da casa, da rua.

Se, de forma geral, a compaixão pode ser compreendida como a valorização das vivências/sentimentos de si e do outro com abertura de coração, as expressões singulares de compaixão – das mais sutis as mais contundentes – são caminhos para dizer, com nossa história pessoal, como se vivencia a interdependência humana.

 

Compaixão como fluxo

O fluxo imprevisível dos (des)encontros merece tempo e espaço para circular, para pouco a pouco chegarmos em lugares de aconchego. Sim, sinto que a compaixão está mais em buscar olhar cada ser com dignidade do que na própria conquista absoluta desse estado.
A convivência é feita de interações em fluxos de minutos ou de anos e não de ações isoladas.

Às vezes, podemos estar em sintonia com alguém e perder esse fio em segundos, por medo ou dúvida nas sutilezas das interações. A desconexão também faz parte de processos de (re)conhecimento de si e do outro e ela não deslegitima a caminhada.
O que não sabemos sobre nós e sobre o outro podemos aprender com os recursos disponíveis e então cultivar a vida com significado também coletivo.

Para mim, trabalhar com o cultivo da compaixão faz sentido pois podemos aprender a expressar, de várias formas e em diferentes situações, que reconhecemos a importância de outros seres ao redor, tanto quanto a nossa.

Desejo então, que a gente se reconheça, que a gente possa fluir em conjunto.